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14 de setembro de 2017
Em defesa da agricultura: vamos comer o que?
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POR INSTITUTO CNA

A regra é antiga: se você quer fazer uma pessoa feliz com as próprias opiniões, nunca apresente a ela dois lados para uma questão. Apresente um lado só — ou, melhor ainda, não apresente nenhum. Nada é mais cômodo do que viver convencido de que certas coisas não podem ser discutidas, pois são a verdade em estado definitivo. É o que está acontecendo hoje com a questão ambiental pelo mundo afora — especialmente no Brasil, que teve o destino de ser sorteado com 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território com exuberância ambiental. Ficou decidido pela opinião pública internacional e nacional que o Brasil destrói cada vez mais as suas florestas — por culpa direta da agricultura e da pecuária, é claro. Terra que gera riqueza, renda e imposto é o inferno. Terra que não produz nada é o paraíso. Fim de conversa. Os fatos mostram o contrário, mas e daí? Quanto menos fatos alguém tem a seu favor, mais fortes ficam as suas opiniões.

As coisas estão deste jeito há anos — há apenas uma ideia em circulação, e essa ideia está errada. O resultado direto é a falsificação de alto a baixo de todo o debate sobre desmatamento e cultivo do solo no país. Ninguém poderia imaginar, pelo que se vê e lê todos os dias, que a área de matas preservadas no Brasil é mais do que o dobro da média mundial. Nenhum país do mundo tem tantas florestas quanto o Brasil — mais que a Rússia, que tem o dobro do seu tamanho, e mais que Canadá e Estados Unidos juntos. Só o Parque Estadual da Serra do Mar, em São Paulo, é duas vezes maior que a maior floresta primária da Europa, na Polônia. Mais que tudo isso, a agricultura brasileira ocupa apenas 10%, se tanto, de todo o território nacional — e produz mais, hoje, do que produziu nos últimos 500 anos. Não cresce porque destrói a mata. Cresce por causa da tecnologia, da irrigação, do maquinário de ponta. Cresce pela competência de quem trabalha nela.

Como a agricultura poderia estar ameaçando as florestas se a área que cultiva cobre só 10% do país — ou tanto quanto as terras reservadas para os assentamentos da reforma agrária? Mais: os produtores conservam dentro de suas propriedades, sem nenhum subsídio do governo, áreas de vegetação nativa que equivalem a 20% da superfície total do Brasil. Não faz nenhum sentido. Não se trata, aqui, de dados da “bancada ruralista” — foram levantados, computados e atualizados pela Embrapa, com base no Cadastro Ambiental Rural, durante o governo de Dilma Rousseff. São mapas que resultam de fotos feitas por satélite. Pegam áreas de mata a partir de 1 000 metros quadrados; são cada vez mais precisos. São também obrigatórios — os donos não podem vender suas terras se não estiverem com o mapeamento e o cadastro ambiental em ordem. Do resto do território, cerca de 20% ficam com a pecuária, e o que sobra não pode ser tocado. Além das áreas de assentamentos, são parques e florestas sob controle do poder público, terras indígenas, áreas privadas onde é proibido desmatar etc. Resumo da ópera: mais de dois terços de toda a terra existente no Brasil são “áreas de preservação”.

O fato, provado por fotografias, é que poucos países do mundo conseguem tirar tanto da terra e interferir tão pouco na natureza ao redor dela quanto o Brasil. Utilizando apenas um décimo do território, a agricultura brasileira de hoje é provavelmente o maior sucesso jamais registrado na história econômica do país. A última safra de grãos chegou a cerca de 240 milhões de toneladas — oito vezes mais que os 30 milhões colhidos 45 anos atrás. Cada safra dá para alimentar cinco vezes a população brasileira; nossa agricultura produz, em um ano só, o suficiente para 1 bilhão de pessoas. É o que se chama “segurança alimentar”, que não existe no Japão, na China ou na Inglaterra, por exemplo — para não falar da África e outros fins de mundo onde há fome permanente, e para os quais as sociedades civilizadas recomendam dar esmolas.

O Brasil, que até 1970 era um fazendão primitivo que só conseguia produzir café, é hoje o maior exportador mundial de soja, açúcar, suco de laranja, carne, frango — além do próprio café. É o segundo maior em milho e está nas cinco primeiras posições em diversos outros produtos. O cálculo do índice de inflação teve de ser mudado para refletir a queda no custo da alimentação no orçamento familiar, resultado direto do aumento na produção. A produtividade da soja brasileira é equivalente à dos Estados Unidos; são as campeãs mundiais. Mais de 60% dos cereais brasileiros, graças a máquinas modernas e a tecnologias de tratamento do solo, são cultivados atualmente pelo sistema de “plantio direto”, que reduz o uso de fertilizantes químicos, permite uma vasta economia no consumo de óleo diesel e resulta no contrário do que nos acusam dia e noite — diminui a emissão de carbono que causa tantas neuroses no Primeiro Mundo. Tudo isso parece uma solução, mas no Brasil é um problema. Os países ricos defendem ferozmente seus agricultores. Mas acham, com o apoio das nossas classes artísticas, intelectuais, ambientais etc., que aqui eles são bandidos.

A consequência é que o brasileiro aprendeu a apanhar de graça. Veja-se o caso recente do presidente Michel Temer — submeteu-se à humilhação de ouvir um pito dado em público por uma primeira-ministra da Noruega, pela destruição das florestas no Brasil, e não foi capaz de citar os fatos mencionados acima para defender o país que preside. Não citou porque não sabia, como não sabem a primeira-ministra e a imensa maioria dos próprios brasileiros. Ninguém, aí, está interessado em informação. Em matéria de Amazônia, “sustentabilidade” e o mundo verde em geral, prefere-se acreditar em Gisele Bündchen ou alguma artista de novela que não saberia dizer a diferença entre o Rio Xingu e a Serra da Mantiqueira. É automático. “Estrangeiro bateu no Brasil, nesse negócio de ecologia? Só pode ter razão. Desculpe, buana.”

Nada explica melhor esse estado de desordem mental do que a organização “Farms Here, Forests There”, atualmente um dos mais ativos e poderosos lobbies na defesa dos interesses da agricultura americana e do universo de negócios ligado a ela. Não tiveram nem sequer a preocupação de adotar um nome menos agressivo — e também não parecem preocupados em dar alguma coerência à sua missão de defender “fazendas aqui, florestas lá”. Sustentam com dinheiro e influência política os Green¬peaces deste mundo, inclusive no Brasil. Seu objetivo é claro. A agricultura e a pecuária devem ser atividades privativas dos países ricos — ou então dos mais miseráveis, que jamais lhes farão concorrência e devem ser estimulados a manter uma agricultura “familiar” ou de subsistência, com dois pés de mandioca e uma bananeira, como querem os bispos da CNBB e os inimigos do “agronegócio”. Fundões como o Brasil não têm direito a criar progresso na terra. Devem limitar-se a ter florestas, não disputar mercados e não perturbar a tranquilidade moral das nações civilizadas, ecológicas e sustentáveis. E os brasileiros — vão comer o quê? Talvez estejam nos aconselhando, como Maria Antonieta na lenda dos brioches: “Comam açaí”.

* J.R. Guzzo é colunista de VEJA

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